27.7.05

Darwinismo



Como da acácia brotou a girafa
cada vez mais alta, cada vez mais alta
e da girafa brotou a acácia
como a gazela gerou a chita
e a chita gerou a gazela
os cardos, os lábios do elefante
e os lábios do elefante, os cardos
deixa que seja eu a te formar.
Não temos gerações a perder de vista
nem a senha dos nossos códigos genéticos
temos que ser rápidos
em vez de milhões de anos, esta tarde,
amanhã de manhã, a próxima semana
com sorte os próximos meses, os próximos anos
sejamos a traça e o morcego
a lula e o camarão
o leão e a hiena
sejamos o hipopótamo e o pássaro que o limpa
o pastor e o seu cão
o cão e o seu lobo
o lobo e a sua ovelha
a ovelha e o seu pastor.
Deixa ser eu a tua circunstância
tu predador, eu caça,
eu caçador, tu carapaça
e em cada encontro se decida
como será a próxima investida
que cores vais vestir, que manhas, que manobras
que forma de fugir, de picar, de morder
onde quero morar, onde queres morrer
que artes para me enganar
com que teias te envolver.
Com o tempo, já sabes, ganharei olhos complexos
tu aprenderás a cantar
terás asas nos pés, fabricarás seda
eu me confundirei com as paredes da casa
cavarei tocas, fingirei de morto
nas horas vagas encherás de veneno
as tuas mandíbulas cada vez mais vistosas
terás escamas de cores espantosas
eu, anticorpos e paciência.
Ao fim dessa lenta evolução
já não seremos da mesma espécie
eu talvez um daqueles bichos bizarros
que dizem que moram no porão dos mares
cegos e cintilantes, transparentes, obsessivos
e tu quem sabe uma tal planta furtiva
que segundo li vai espalhando as suas raízes
discretamente, persistentemente
milhas e milhas e milhas e milhas
pelo que se pensava ser o deserto

1 comentário:

  1. De frente para sua poesia fico quieta e feliz, como se diante de uma pintura, tragando pelos olhos, demoradamente, sem saber analisar a forma mas adivinhando-lhe a côr. Obrigada pelo momento.

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