16.5.22

O primeiro de janeiro











Este ano comi demais

estou farto

 

comi

comi

comi

comi o ano inteiro

 

foram litros de azeite, mel, leite, refresco

quilos de carne e de sal grosso e de farinha

foram alhos e coentros, cebolas, linguiças

e ovos e couves e fauna marinha

e isto para saciar um único mamífero

para mais de estatura média

peso regular

 

um ano inteiro a devorar, devorar

devorei doces, devorei raízes

livros, paisagens, estradas, revistas

engoli sapos

engoli mágoas

engoli todo o género de embuste

e quando não pude engolir na hora

ainda levei o desaforo para casa

estou farto

 

fui sôfrego, esganado, desmedido

ingeri tudo à pressa e à mistura

bebi sem sede, comi

sem fome e sem critério,

só por gula

não admira que, por muito que os lave

tenha nos dedos este cheiro a gordura

estou farto

 

farto, senhora, desta pança imensa

deste fastio

desta coisa lá dentro como um rio

que cresce e sem aviso se revolta

e logo jorrará por toda a costa

chame os bombeiros, depressa, senhora

já não contenho

tudo o que devorei o ano inteiro

sofá, cortina, tapete, vestido,

o belo quadro e a bela moldura

em breve sentirão minha fartura

 

perdão, senhora, se lhe mancho a festa

estava tudo tão bom, mas, tem razão, já basta

este ano comi demais

no que começa

observarei rigorosa dieta. 

 


12.5.22

Depois da serenata

 


E então fiquei pensando na nossa noite de amor


aquela que ainda não tivemos


aquela que possivelmente nunca teremos


não é,


meu amor?

 

Fiquei pensando na nossa conversa

e nas palavras estranhas que foram surgindo


as energias sexuais para lá e para cá


e o útero


e a penetração


e até mesmo a intimidade


e tal

 

e enquanto ia pensando em tudo isso

não era em nada disso que pensava

 

nada disso

 

o que acendeu a sério o meu desejo

foi a imagem de acordar com você

 

minto:

de acordar antes de você e ficar ali quieto

ficar ali quieto te vendo

ficar ali te vendo adormecida

te ver adormecida

respirando

lá no seu mundo

e aqui tão perto

 

e então

então sentir em mim o ondular do seu sonho

enquanto a claridade

devagarinho

penetra as frestas do meu coração 

11.5.22

Fantasia


O que eu queria, meu amor

o que fantasio

era te inspirar orgasmos

de toda cor e feitio


que em cada parte do teu corpo

onde chegasse o meu toque

brotasse mais um orgasmo

e depois outro, e mais um

e todos múltiplos 

e tantos

uma sinfonia de orgasmos

os teus, os meus, em sincronia


e nenhum deles mais do mesmo

uns tântricos,

outros românticos,

uns mais pacíficos

outros atlânticos

orgasmos sísmicos

cataclísmicos

um infinito

outro fugaz

estes sutis

estes brutais

líricos, 

líquidos, 

telúricos, 

lúdicos

lúbricos

anais

aqueles cármicos

estes anímicos

espirituais


e vez por outra um tão profundo

que alvoroçasse uma cidade

na outra ponta do mundo


(sem falar do vizinho do lado

que logo chama a polícia

 

que grande inconveniente

explicar ao senhor agente

quanto pode uma carícia)

 

isto, meu amor, é o que eu queria

e quem sabe te darei, um dia

assim o corpinho possa

 

(não é nenhuma promessa

é só uma fantasia)


até lá, entretanto, se esta

improvável dança nossa

puder ir sendo o que for

não é um orgasmo, meu amor

mas para mim já é uma festa

9.5.22

Tinta

O sol lambendo o telhado
a festa na mesa ao lado
lá atrás a mulher que ria.
Tudo já se dissolvia
quando meu traço hesitante
quis encarcerar o instante
nas dobras do meu caderno.
Se fosse este azul eterno
se esta tarde, permanente
- mas foi tudo inutilmente:
pelos vãos do casario
o sol escorreu para o rio
a mulher pagou a conta
ao lado calou-se a festa
do azul da tarde o que resta:
este bocado de tinta.

17.10.21

Não escolhas tanto

Não, não escolhas tanto

vê como enquanto
escolhes passa o tempo, e quanto
desdenhas te abandona
vê como se desgrenha
vê como desmorona
teu cabelo sem brilho, o teu mamilo 
o menisco no escuro, a rótula 
gasta, rota, torta 
já sem remédio, já sem resgate, 
vê o teu rosto que colado à tarde 
desbota 
e a testa que se crispa 
e a chispa 
morta 

Não escolhas tanto 
não vês que pouco importa 
de que lado te deitas 
se quanto enjeitas, 
se de quanto gostas, 
vê como parte, 
vê como corta 
a quina do crepúsculo a tua aorta

daquela esquina de onde ainda te fita 
vê a crina do sonho que se agita 
e vira as costas

12.9.21

Num postal de Babilônia

 

onde está a minha cidade 
deixei a que tinha 
esta que adoptei 
não é minha 

falam quase a minha língua 
mas com tão estranha sintaxe 
que eu, quando abro a boca, é como 
se mancasse 

minha língua claudicante 
vai tropeçando nos pronomes 
e na falta de bigodes 
no que se bebe, no que se come 

quando, turista, visito 
a cidade que deixei 
lá não sou menos estrangeiro 
ou então, se sou, já não sei 

fiquei no meio do caminho 
no meio do mar, no meio 
do corredor do avião 
entre lisboa e o rio 

com outros no mesmo barco 
faço churrascos, sambas, festas 
para esquecer o que perdemos 
fazer a conta do que resta

Mãe

 
O que é que eu faço nesta terra longe 
onde ninguém nem minha língua fala? 
não sabem o que é frevo, roça, bonde 
até doçura de bala resvala 
na língua deles para o som de um tiro 
e é só tiro o que ouvem quando estoura 
em minha boca a saudade do Rio 
para mim é guizo pela noite fora 
eles nem sonham como soa isso 
Ô mãe, me conta quando é que eu volto 
desta terra em que mais me enraízo 
com quanto mais remorsos a revolvo 
esse oceano que pus pelo meio 
era o muro alto atrás do qual morava 
mais doce, mais maduro, o verde alheio 
hoje sei o que era: água salgada 
tanta água, mãe, tanta, tanta água 
que nordestino sol a enxugaria 
meu caminho de volta para casa 
que Itaipu o seca, que meio dia?

Diagnóstico

Mora em mim um poeta com febre 
a noite inteira em silêncio recita 
longos poemas que depois esquece 
ou que, se os recorda, por preguiça 
de manhã não escreve 
mora em mim esse artista calado 
de madrugada esses passos que sinto 
é ele que percorre de alto a baixo 
a noite inteira o seu labirinto 
o poema trancado

12.8.20

Das palavras

Palavras são como casas

(ruas

pontes)

uma tão pequena parte do mundo

 

lá fora há pólen pó bactérias gafanhotos

rugosidades fumo espinhos lixo

e, entre todas essas coisas com nome,

as outras, tantas mais, que não têm nome:

o que sente o pássaro nas suas vísceras quando o tempo vai mudar amanhã

a coincidência de forma entre a pedra e a pedra

quando entre elas passa o olhar de um lagarto

o que sentiu o teu corpo nessa específica tarde

quando o teu corpo era a tarde e a impossibilidade de ser a tarde

a tarde era esquiva e longe

a tarde era o resumo das distâncias

a tarde era nunca mais

 

a tarde não foi feita para caber em palavras

o mundo não cabe em palavras

o mundo não cabe

não cabe nos teus olhos nos teus braços

nos teus nãos

por isso carregas esse medo do mundo

moves-te de casa em casa

de rua em rua

esgueiras-te por cima das pontes como quem anda em pontas de pés

por isso és esse Jacques Tati

tão cómico a desviares-te da lama dos buracos da sujeira dos cães

dos vírus dos mendigos das correntes de ar

tão bom menino

sempre calçado sempre agasalhado como a mãe mandou

palavras são como pantufas

são como luvas

como cachecóis

 

acontece que o mundo não respeita as palavras

abre-se uma janela e ele entra

uma fresta no telhado e ele entra

uma fresta na pele

a mão que te esqueceste de lavar

o mundo enche a casa de pó,

alaga as ruas

dissolve os teus pulmões

palavras são como galochas

um tanto ridículas mesmo quando te mantêm os pés secos

são como chapéus de chuva e acontece que às vezes venta

era tanto vento, mãe, tanto vento

 

o mundo não foi feito para caber em palavras.

1.1.20

Cenizas


Do que o olho viu quanto ecoa
Do que o atrai
Quanto trai
Quanto coa

Entre o olho e diafragma qual
O contrato

Nem seiva nem
Substrato

Nitrato
Filme queimado
Cinzas


23-08-2019

(Escrito para o lançamento da revista Cenizas nº45, que ficou a cargo da Renata Siqueira Bueno)

25.12.19

Dezembro


Passo a passo, na tarde de inverno
descubro quem sou
sou estas casas
sou estas árvores
sou esta cor do casaco de nylon que passa por mim
e reverbera, estranhamente destacada
do azul da tarde

sou a foto em preto e branco da basílica
que até tiraria, se tivesse trazido a máquina
mas não a trouxe, e assim
ninguém a verá

sou este eu que mal o descubro se dissolve
no mesmo azul da tarde em que se movem
casas
árvores
basílica
caminham por mim como se levassem pantufas
como se receassem acordar a cidade
partir este silêncio maior que a cidade
e ao mesmo tempo tão frágil, tão breve
como este eu

estas outras casas
outras cores
outras árvores
este outro ângulo de onde vejo a basílica
a saudade antecipada da tarde
o azul que passo a passo me dissolve
e se dissolve em mim

25.6.19

Voto


Não escreverei para mudar o mundo
para mudar a tua vida
para te salvar

não escreverei para que me sigas

que me admires ou que me adores
que me faças likes ou que me ignores
declaro aqui ser-me totalmente indiferente

(ou quase)
em todo o caso não escreverei para isso

não escreverei porque me queime por dentro
alguma paixão – nem mesmo a de escrever
ou porque tenha de aplacar fantasmas
despejar no mundo este restinho de bílis

escreverei apenas

às vezes com prazer, às vezes
como quem tediosamente se desincumbe de um rito
arrumar a cama
limpar a casa dos mortos
desfiar ave-marias enquanto se pensa noutra coisa

algumas vezes com intensidade – outras
de forma tão alheia que se depois me perguntarem
reconhecerei com surpresa a minha própria caligrafia
mas não estes lugares comuns, estas
hipérboles,
os trocadilhos
as metáforas para lá de velhas mesmo quando
ainda detentoras de algum poder

(Ah), disse ele entre parênteses
(quanto não daria para escrever alheio assim).

Mas me extravio.
Dizia apenas que num dia escreverei assim, no outro assado
mas escreverei sempre

por nenhuma razão – apenas
porque as palavras são a secreção do meu corpo
esta tinta que me sai quando fricciono a caneta
e vai deixando no papel o seu rasto
assim eu, quando me esfrego
na pele do mundo
sou como o caracol que vai deixando a sua gosma
não creio que tenha pensado no assunto
ou que se tenha pessoalmente empenhado
na produção dessa gosma que, dizem
tem uma composição complexa
rica em proteínas e colágeno e sei lá que mais substâncias
que o caracol, igualmente, ignora

se por onde passa vai deixando a sua gosma  
é porque não sabe fazer mais nada
ou até saberá, mais duas ou três coisas
arrastar-se pelo pavimento à procura de restos
trepar na lata da comida do cão
fazer filhos
à moda lânguida dos caracóis

mas nada disso o dispersa, nada
lhe rouba o tempo e a pouca ciência de que precisa
para fazer a sua gosma

o caracol nunca desejou ser o melhor produtor de gosma do mundo
aperfeiçoar a arte
de produzir tão bela gosma
vai seguindo apenas, e a gosma
vai-lhe saindo.

Quando um dia alguém, por distração ou maldade
esmigalhar o caracol sob uma sola apressada
ou mesmo quando o levarem
muito intencionalmente para a panela
quem notará a falta do caracol
e da sua gosma

aquilo que com tanta exclusividade produziu – e era suposto
ser o seu rasto neste planeta
em pouco tempo não deixará qualquer rasto
o sol o secará, a chuva
completará o trabalho
desaparecerá com o mesmo silêncio daquela estrela, uma entre bilhões
que depois de luzir e luzir e luzir
pelo que pareciam ser eternidades (mas não eram:
simplesmente luzir era a sua gosma
e tampouco sabia fazer mais nada)
um belo dia explodiu, na noite quieta do universo
ou então encolheu-se toda

e desde então não luziu mais
sem que ninguém escrevesse um poema para cantar a sua treva.


Niterói e Lisboa, dezembro 18/junho 19

31.3.19

Tu


Para quando a casa do sonho
para quando
cavalos pela alvorada
mastigavam poeiras e orvalhos e nuvens
poeiras e orvalhos e nuvens e tu
da janela governavas a paisagem

para quando as aleluias e as garças
donas de tudo entre o pinheiro e a treva
a casa do sonho a casa do sonho a casa

um badalo convocava para o almoço
vozes e risos pelos montes, tu
escondida na horta, submersa
no pátio ensolarado

dona de tudo entre o pinheiro e a treva

para quando a tarde extrema entre os teus dentes
a tarde com a sua urgência, a tarde
com a sua urgência
a tarde


29.4.18

Meio


Não sei se Deus, pela mão do acaso
não sei se o acaso, pela minha mão
- tudo o que tenho é o que me dão
e vão tirando. Mas não faço caso.

Entre o que há de vir e o que veio
o big bang e este minuto
sou só o meio
um filamento, um conduto
um canal
o breve bruxuleio de um sinal
fortuito
que alguém talvez me fez mas que eu, que vejo mal,
não leio.

(Às vezes penso nisto - mas não muito.
Não esperneio.
Olho para o lado.
Nisto que sou nem tido nem achado
hoje não sei. Amanhã estarei calado).

13.3.17

Narciso


O belo moço, debruçado
à beira da fonte, mira
a suprema maravilha
dentro do espelho gelado.
E decide apaixonar-se
pela luminosa face:
não pelo traço que conhece
que com seu próprio semblante
no amado rosto se parece
mas pelo dessemelhante:
pela criatura estranha
que à beira da fonte emerge
nas águas do amor se banha
o belo moço, e se perde.

(Do outro lado do espelho,
Narciso, lúcido, ignora
a conhecida miragem.
O céu se pinta de vermelho
- espanto tanto da hora -
a tarde ensaguenta a paisagem).


In Poemas Durante a Chuva
Lisboa, 1999, Mariposa Azual


6.11.16

Doméstica

I. 

A minha avó varria a casa
o avô criava galinhas
todos os dias vinha uma poeira nova
trazida pelo vento ou na sola das botinas
a minha avó acordava cedo
espanava o tampo das mesas, os braços da poltrona
juntava montinhos de areia no batente das portas
e recolhia tudo, silenciosa
no quintal, o avô criava galinhas
Suzana tinha sete pintos, o Baby quatro
mas Alfredo é quem tinha mais

por cima de tudo, o sol também se calava


II.

no entanto sobrou alguma coisa atrás de um armário
entre a parede e a cristaleira
nas páginas de um livro velho

as galinhas morreram todas - salvo uma
que ninguém tinha visto nascer e procriar
e que contudo espalhou a sua descendência

por fim a casa ruiu
os avós foram esquecidos
mas a cidade, inexplicavelmente
anda coberta dessa camada de pó - que se avoluma
enquanto piam pássaros nefastos.


in Poemas Durante a Chuva
Lisboa, Mariposa Azual

1.11.16

Agenda

Quando a manhã for a meio
e a tarde quase fatal
entenderei ao que veio
a madrugada, afinal?

aceitarei que anoitece
a hora a escorrer de mim
quando o que quis que viesse
não veio, não foi assim

e o olhar do tempo, tranquilo
no espelho da minha mão
repete que sobre aquilo
a resposta é muda - e é não?


Outubro 2016