Não escreverei para mudar o mundo
para mudar a tua vida
para te salvar
não escreverei para que me sigas
que me admires ou que me adores
que me faças likes ou que me ignores
declaro aqui ser-me totalmente indiferente
(ou quase)
em todo o caso não escreverei para isso
não escreverei porque me queime por dentro
alguma paixão – nem mesmo a de escrever
ou porque tenha de aplacar fantasmas
despejar no mundo este restinho de bílis
escreverei apenas
às vezes com prazer, às vezes
como quem tediosamente se desincumbe de um rito
arrumar a cama
limpar a casa dos mortos
desfiar ave-marias enquanto se pensa noutra coisa
algumas vezes com intensidade – outras
de forma tão alheia que se depois me perguntarem
reconhecerei com surpresa a minha própria caligrafia
mas não estes lugares comuns, estas
hipérboles,
os trocadilhos
as metáforas para lá de velhas mesmo quando
ainda detentoras de algum poder
(Ah), disse ele entre parênteses
(quanto não daria para escrever alheio assim).
Mas me extravio.
Dizia apenas que num dia escreverei assim, no outro assado
mas escreverei sempre
por nenhuma razão – apenas
porque as palavras são a secreção do meu corpo
esta tinta que me sai quando fricciono a caneta
e vai deixando no papel o seu rasto
assim eu, quando me esfrego
na pele do mundo
sou como o caracol que vai deixando a sua gosma
não creio que tenha pensado no assunto
ou que se tenha pessoalmente empenhado
na produção dessa gosma que, dizem
tem uma composição complexa
rica em proteínas e colágeno e sei lá que mais substâncias
que o caracol, igualmente, ignora
se por onde passa vai deixando a sua gosma
é porque não sabe fazer mais nada
ou até saberá, mais duas ou três coisas
arrastar-se pelo pavimento à procura de restos
trepar na lata da comida do cão
fazer filhos
à moda lânguida dos caracóis
mas nada disso o dispersa, nada
lhe rouba o tempo e a pouca ciência de que precisa
para fazer a sua gosma
o caracol nunca desejou ser o melhor produtor de gosma do
mundo
aperfeiçoar a arte
de produzir tão bela gosma
vai seguindo apenas, e a gosma
vai-lhe saindo.
Quando um dia alguém, por distração ou maldade
esmigalhar o caracol sob uma sola apressada
ou mesmo quando o levarem
muito intencionalmente para a panela
quem notará a falta do caracol
e da sua gosma
aquilo que com tanta exclusividade produziu – e era suposto
ser o seu rasto neste planeta
em pouco tempo não deixará qualquer rasto
o sol o secará, a chuva
completará o trabalho
desaparecerá com o mesmo silêncio daquela estrela, uma entre
bilhões
que depois de luzir e luzir e luzir
pelo que pareciam ser eternidades (mas não eram:
simplesmente luzir era a sua gosma
e tampouco sabia fazer mais nada)
um belo dia explodiu, na noite quieta do universo
ou então encolheu-se toda
e desde então não luziu mais
sem que ninguém escrevesse um poema para cantar a sua treva.
Niterói e Lisboa, dezembro 18/junho 19