11.12.04

Historinha quase triste


Subitamente, o coração ensanguentado
tirei do bolso e pus nas mãos da moça.
A moça ficou tão perplexa
quis logo chamar a polícia
mas quando viu pulsar em suas mãos
meu pobre ensanguentado coração
ficou com pena
fez um afago
nem se importou de manchar o vestido.
Ninou meu coração feito um menino
até que ele adormeceu.
A moça, então, muito quieta
bem devagar me deu de volta o coração
e devagar se foi, e me deixou ali
com o adormecido coração na mão.


in Poemas Durante a Chuva, Lisboa, Mariposa Azual, 1999.

Ouça na voz de Luís Gaspar

10.12.04

Um bicho




Então seremos como fosse um bicho
que quando erguer o ouvido e o olho atento
não buscará no ar nenhum sentido
pergunta apenas para que lado o vento
e é ele mesmo o vento que responde
voz, movimento, tudo confundido
e é ele mesmo quem, e é ele onde
ele a partida, o trajecto, o destino

seremos como esse bicho calado
que quando ergue a asa e o vento o leva
sequer pergunta mais para que lado
apenas parte, sem peso, sem pressa
e nem lhe importa se é certa ou avessa
a face do ar que o seu desejo cruza
sem qualquer dúvida, qualquer certeza
é a asa desse bicho em nós que pulsa

seremos como esse bicho que corta
em dois o ar com a lâmina da asa
e o risco que desenha já não torna
a ser visto depois, mas não se apaga
estará sempre ali, enquanto o mundo
sem perceber ainda o que o partiu
inutilmente busca ir recompondo
o tempo em que era um e inteiro e antigo

seremos como esse bicho, seremos
e sem saber tampouco mais de nós
pesaremos no chão ainda menos
que esta sombra que fomos e que foge
ou este raio de luz reflectido
por um instante só, à flor da asa
e o instante não é breve nem comprido.
Seremos como esse bicho. Mais nada.