10.10.15

Bondade

Ah, os deserdados da terra a naufragar
às costas da Sicília, em Ceuta, no mar Egeu
traficados em containers, mortos de frio, vendidos
na Europa rica como na Tailândia ou na China
prostituídos, escravizados, ah
a dor inesgotável do mundo

e se nem estiver para ir tão longe
basta apanhar o metro onde todos os dias
dependendo da linha e dos horários
há um cego para cada preferência
cada um com o seu estilo de mendicância

tenham a bondade de me auxiliar
dizem o dos olhos desorbitados
e a mulher que nem sequer tem olhos
sob as pálpebras cosidas à linha

o outro, o que improvisa ritmos com a bengala e o pregão
às vezes passa-se com a indiferença geral
abandona o tom choroso de pedinte
larga a vociferar contra a nossa avareza
a nossa maldade
a incorrigível mesquinhez deste povo

nessas alturas, ocasionalmente
até consegue furar a indiferença
há olhos que descolam dos iphones
sobrolhos que se franzem, um ou outro
passageiro mais sanguíneo que lhe devolve os insultos

mas nenhuma
nenhuma esmola
nem a minha
nem nenhuma
eu não tenho a bondade de o auxiliar
ninguém tem a bondade de o auxiliar

meu coração queria sofrer por essas dores
e tantas outras
tantas, tantas
meu coração queria sofrer por todas elas
mas não sofre

de vez em quando se encolhe, é verdade
quando calha na tevê um documentário de guerra
às vezes sobre a Síria, as mães da Palestina
no Facebook um vídeo sobre os curdos
os surdos
o que fizeram a um pobre cãozinho que já não dava jeito aos donos

de vez em quando então meu coração suspira
uma lágrima brota rápida
e logo seca

meu coração queria tanta coisa
mas quem tem tempo para tantas desgraças

ah, meu coração
era tão bom poder sofrer com tudo isso

era tão bom 

14.7.15

Sobre uma foto do rio São Francisco


O tempo vai fazendo o seu trabalho
e eu aplicadamente o contrario
 – não com força bastante para pará-lo
mas com a da corrente deste rio

que puxa um barco de volta pro mar
e o barco o vai vencendo, indiferente,
rumo à nascente onde não chegará.
Assim resisto. O tempo segue em frente.

E enquanto segue somos companheiros,
sem nunca coincidir, meu não, seu sim.
Quando encontrar o porto, o marinheiro

da margem se despedirá de mim.
O tempo terá sido passageiro –
eu, rio, em direção ao mar, sem fim.



14-07-2015

10.5.15

Treva

















O soldado entrincheirado
no seu buraco de lama
vê nascer lá fora a lua
seu coração se derrama
mas sua vista se turva
o inimigo viu primeiro
a lua, e com seu morteiro
explode-a em mil pedaços
o soldado estende os braços
para o luar espalhado
sobre a terra, sobre a treva
da trincheira do soldado

Cisma

























Se eu ficar aqui olhando
pro mar pro mar pro mar
ficar olhando até quando
a Terra se iluminar
se eu gastar todo o meu tempo
nesse cismar sem assunto
será que encontro o motivo
de existir mar
de haver mundo

Logística

O que é que eu faço de tanta cultura
tanto livro que li, tanta literatura
agora me atravancam a sala
fui comprar uma estante, era os olhos da cara
agora onde é que guardo o disco, a partitura
a enciclopédia, o dicionário
se ao menos eu tivesse um armário
vida dura dura dura dura
o que é que eu faço de tanta cultura

29.7.2004