Ah, os deserdados da terra a naufragar
às costas da Sicília, em Ceuta, no mar
Egeu
traficados em containers, mortos de frio,
vendidos
na Europa rica como na Tailândia ou na
China
prostituídos, escravizados, ah
a dor inesgotável do mundo
e se nem estiver para ir tão longe
basta apanhar o metro onde todos os dias
dependendo da linha e dos horários
há um cego para cada preferência
cada um com o seu estilo de mendicância
tenham a bondade de me auxiliar
dizem o dos olhos desorbitados
e a mulher que nem sequer tem olhos
sob as pálpebras cosidas à linha
o outro, o que improvisa ritmos com a
bengala e o pregão
às vezes passa-se com a indiferença geral
abandona o tom choroso de pedinte
larga a vociferar contra a nossa avareza
a nossa maldade
a incorrigível mesquinhez deste povo
nessas alturas, ocasionalmente
até consegue furar a indiferença
há olhos que descolam dos iphones
sobrolhos que se franzem, um ou outro
passageiro mais sanguíneo que lhe devolve
os insultos
mas nenhuma
nenhuma esmola
nem a minha
nem nenhuma
eu não tenho a bondade de o auxiliar
ninguém tem a bondade de o auxiliar
meu coração queria sofrer por essas dores
e tantas outras
tantas, tantas
meu coração queria sofrer por todas elas
mas não sofre
de vez em quando se encolhe, é verdade
quando calha na tevê um documentário de
guerra
às vezes sobre a Síria, as mães da
Palestina
no Facebook um vídeo sobre os curdos
os surdos
o que fizeram a um pobre cãozinho que
já não dava jeito aos donos
de vez em quando então meu coração suspira
uma lágrima brota rápida
e logo seca
meu coração queria tanta coisa
mas quem tem tempo para tantas desgraças
ah, meu coração
era tão bom poder sofrer com tudo isso
era tão bom