28.11.06
Antes
Será o sussurro de deus
ou só o desejo de ir-me
a voz que diz, junta os teus
faz um barco em terra firme
até aonde a vista chega
não há lago nem ribeiro:
pedra vento terra seca
mas deus quis-me marinheiro
a remar de encontro ao riso
dos pastores desta aldeia
Noé, o doido varrido
à espera da grande cheia
19.11.06
O Cabeleira
Teres tão vasto cabelo
projecta no mundo em volta
desmesurada espessura
olhos, palavra, figura
tudo deixa mudo o berro
de tua alta juba solta
A cabeleira revolta
do Cabeleira arrebata
todo o desejo da noite
passou por aqui e foi-se
levou para dentro da mata
nossos olhos por escolta
Sal, Julho de 2004
Legado
Não carne, rala e mole, não do sangue
por movediços leitos, a corrente
não a escorrer saliva e fel, os dentes
não cabelos de cores flutuantes
nem aquilo que é meu se o peço e dou
e, demais ou de menos, lego à frente
- que, sendo meu, só e sempre me prende
cólera, medo, angústia, embora amor
não a aparência líquida onde nada
tão provisória, a existência, guarda
a deixa que há de ti no que sou eu
mas a alegria que desse mar desce
praia onde toda outra onda emudece
grão outro modo sólido - fiel.
in Poemas durante a chuva, Lisboa, Mariposa Azual, 1999.
4.11.06
Dois poemas de madrugada
I - O poeta com preguiça
Este poema é no lugar daquele
que me ocorreu ainda há pouco
mas eu tive preguiça
e o poema se perdeu
não tem importância:
poema sobre poema -- isso já nem é tão moderno
mas haverá leitor condescendente
como o poeta que há, preguiçoso.
II - O poeta tímido
Falo em primeira pessoa
por vaidade não, nem por modéstia
mas pela timidez de falar de você
como se me fosse possível.
Um poeta calado arregimenta sílabas
feito um insecto discreto e diligente
e o que ele tece a ninguém interessa
pensa o poeta, em seu canto.
in Poemas durante a chuva. Lisboa, Mariposa Azual, 1999.
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