18.10.05

O morto


Depois, veremos.
Por estes dias
o morto viverá connosco
trincará o nosso pão, ressonará
o seu sono pelos nossos corredores
previnam as visitas, os vizinhos
é inútil reclamar, inútil chamar a polícia
o morto ainda não foi embora
um belo dia há de encontrar o seu leito
no mesmo esquecimento onde se deita tudo
por ora, tenham paciência
uns dias mais, talvez, talvez mais tempo
será preciso aturarmos o morto
seus cotovelos na mesa domingueira
almoço após almoço, até que o tempo
depois de o mastigar, macrobioticamente
de o dissolver na boca
acabe enfim de o digerir, enquanto o morto
faz a sesta na sala, morto
e farto
e que ninguém lhe ligue, ninguém toque
no assunto deste morto inconveniente
que tosse pelas nossas madrugadas
até que a indiferença, acumulando-se
como o pó no soalho, vá enterrando
gradualmente, lentamente, o morto
talvez leve o seu tempo
até que a chuva, caindo, caindo
sobre a casa, a terra, o universo
desbote o morto, tire a nódoa do morto
lave o cheiro do morto, a voz do morto
e o cortejo das águas leve o morto
para bem longe,
um rio bem longe,
o mar
bem longe

10.10.05

O amor e um peixe


E o amor seria tão natural
quanto um homem ser um homem
quanto uma mulher ser uma mulher
e ser um peixe alguma outra coisa
totalmente imune ao amor

que entre o homem e a mulher deslizará para sempre
e para sempre os fitará com o seu olho assustado
seu grande olho de peixe, arregalado.


in Poemas durante a chuva, Lisboa, Mariposa Azual, 1999.

2.10.05

O Porto



Estava só na ribeira
(toda cidade é estrangeira)
à procura do campo alegre
passava um guarda, como é que vai,
senhor guarda, como é que vou?
o guarda alarmado hesitou
não queria ferir meus sentimentos
mas o campo alegre?
o guarda coçava a cabeça
é muito difícil
porque não vai para outro lado?
ah, estes brasileiros
sempre a querer o que não é suposto

fiquei sozinho na ribeira
(toda cidade é estrangeira)
com aquele alto limite

foi então que me perdi no porto

entre a batalha e o bolhão
entre o bolhão e as antas
e novamente a batalha
e novamente o bolhão
e novamente a batalha
(toda cidade é estrangeira
mas algumas
prestam-se mais a mal entendidos)

Foi então que nunca mais cheguei
nunca cheguei à boa vista
nunca cheguei ao bom sucesso
ao campo alegre ao bom fim
fiquei rodando rodando rodando
rodando à volta do porto
foi então que nunca mais atraquei

estava sozinho na ribeira
(toda cidade é estrangeira)