Aos meus companheiros
É hora, companheiros
até aqui estivemos ensaiando
foi tudo muito bom e valeu
mas agora começa o verdadeiro espectáculo
todos juntos
espalmemos as mãos com leveza e com graça
vamos alçar os pés, brandir os braços e girar
e descer a porrada
porrada
eu quero ver punhos fechados esmagando queixos
quero ver o tapa no ouvido
na boca do estômago a bela cotovelada
isso, companheiros
até agora combatemos na sombra
por baixo do pano íamos dando rasteiras anódinas
agora é no centro do palco
na linha divisória do gramado vamos linchar o juiz e a mãe do juiz
e o time adversário e cada um dos nossos próprios parceiros
porrada
cubramo-nos finalmente de porrada
uns aos outros vamos nos esbofetear e baixar o cacete
e nos morder e nos lanhar e nos cravar as unhas
todos o merecemos
acaso não temos sido vis, irremediavelmente estúpidos
bestas mesquinhos sórdidos miseráveis
todos não estivemos ocupados unicamente em passar a perna
ela em mim, eu em você, eles em todos nós
todos caídos no chão, passemos portanto à etapa seguinte
ao chute na boca, ao chute no saco
ao chute no pé do ouvido, ao chute nos olhos
todos com empenho e garra e determinação
vamos fazer o pau cantar de puro gozo
e que ninguém deixe a arena até que todos estejam esfolados
até o menos ridículo
o menos reles
o mais insignificante de nós
todos com escoriações, todos cobertos de hematomas
esse que está se levantando, atenção
metam-lhe a mão na cara
todos os ossos quebrados todos os dentes partidos
todos mutilados, mancos, coxos
todos com um olho a menos, com uma orelha faltando
com a língua decepada a pender de um canto da boca
e a segurar com as mãos o massacrado estômago
os triturados colhões
e a não conter ânsias de vómito e cascatas de sangue
!quiero ver sangre, sangre, sangre!
fazendo poças e se esparramando
suavemente no asfalto da cidade.
In Poemas durante a chuva, Lisboa, Mariposa Azual, 1999.
30.5.06
28.5.06
Um blog de poesia não tem nada a ver.
É que blog e poesia não fazem parte do mesmo tempo. Um blog é uma coisa rápida. Uma janela. A gente abre, dá uma espiada, sai. Quem disse o quê, quem comentou, ahã: já entendi.
Já a poesia é outro andamento. Já viu dois caracóis namorando?
A poesia também é uma janela, se você quiser; só que lá fora é sempre noite retinta. A gente abre, dá uma espiada e nada. Os olhos custam a se acostumar com a poesia.
A poesia é uma forma muito particular de jornalismo.
Jornalismo
quem escreve a biografia
da aranha
a que suspensa no teto
seu projeto
cala e fia
quem testemunha o que apanha
o olho na sua teia:
o céu da tarde de luto
pela janela do trem
e o que por quase um minuto
o vento escreveu na areia
quem
É que blog e poesia não fazem parte do mesmo tempo. Um blog é uma coisa rápida. Uma janela. A gente abre, dá uma espiada, sai. Quem disse o quê, quem comentou, ahã: já entendi.
Já a poesia é outro andamento. Já viu dois caracóis namorando?
A poesia também é uma janela, se você quiser; só que lá fora é sempre noite retinta. A gente abre, dá uma espiada e nada. Os olhos custam a se acostumar com a poesia.
A poesia é uma forma muito particular de jornalismo.
Jornalismo
quem escreve a biografia
da aranha
a que suspensa no teto
seu projeto
cala e fia
quem testemunha o que apanha
o olho na sua teia:
o céu da tarde de luto
pela janela do trem
e o que por quase um minuto
o vento escreveu na areia
quem
26.5.06
Explicação do crepúsculo
Todos os dias, ao fim do dia
a tarde, minha velha tia
sente a cabeça a girar
apoia as mãos na janela
onde ainda há pouco, jovem, bela
o sol a vinha buscar
anda passear lá fora
namorar, fazer bebês
madrugadas, novos dias
a tarde se derretia
dizia não sei, talvez
tudo isso passou, agora
cotovelos na janela
vê de partida quem por ela
faz tempo não brilha mais
vai, bandido, vai-te embora
sai do meu dia, me esquece
que uma tarde que se preze
não chora
na noite que principia
a tarde pede os seus sais
mas a casa está vazia
titia fica tonta e cai
Todos os dias, ao fim do dia
a tarde, minha velha tia
sente a cabeça a girar
apoia as mãos na janela
onde ainda há pouco, jovem, bela
o sol a vinha buscar
anda passear lá fora
namorar, fazer bebês
madrugadas, novos dias
a tarde se derretia
dizia não sei, talvez
tudo isso passou, agora
cotovelos na janela
vê de partida quem por ela
faz tempo não brilha mais
vai, bandido, vai-te embora
sai do meu dia, me esquece
que uma tarde que se preze
não chora
na noite que principia
a tarde pede os seus sais
mas a casa está vazia
titia fica tonta e cai
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