16.6.14

Sugestões para celebrar 90 anos

                                   para Yacy Kopke

Para celebrar 90 anos
minha mãe
o que é que vamos fazer?

Vamos fazer uma festa
não: vamos fazer muitas festas
festas na cabeça, no cabelo
festas na nuca e nos ombros
no neto, no sobrinho, no amor da vida inteira
no cachorrinho e no ratinho branco
nos olhos e no coração

Vamos fazer uma festa

ou então vamos fazer um bolo
um grande bolo de amigos
embolados num abraço

É isso: vamos fazer amigos
e fazê-los tão bem feitos
que nunca mais se desfaçam
ainda que o tempo conspire
e mesmo a morte intervenha
vamos fazer amigos

E vamos fazer amores
e deles filhos e noras
e afilhados e compadres
e netas e namorados
para tumultuar o almoço

Vamos fazer o almoço
vamos fazer muitos almoços
com brigas e gargalhadas
e lasanha e manjar de coco
e doce de abóbora e a porta aberta
para quem por acaso aparecer

vamos fazer um passeio
da José Clemente ao Ingá
vamos fazê-lo de mãos dadas
depois nunca mais soltá-las

e vamos fazer uma casa
entre o ipê e o manacá
e povoá-la de infâncias

vamos fazer um colégio
vamos fazer uma cidade nunca mais ser a mesma cidade

vamos fazer 90 anos
Só? Não.
mais os dos filhos, 268
mais os dos netos 400 e tal
contando os dos amigos todos
sei lá
muitos milhares de anos
uma fortuna de existências
como fazemos para caberem numa pobre vida só

para vida tão abastada
põe-se um problema de espaço
vamos alugar um clube
vamos demolir paredes
vamos romper a madrugada
vamos fazer uma festa

vamos fazer um vídeo
vamos fazer um poema
vamos fazer um poeta
ainda que sempre futuro

vamos fazer uma festa
e vamos fazer umas viagens
umas quantas: umas de ir, outras de ficar
outras de voltar e depois voltar
e depois voltar
onde nunca mais se pode voltar

e vamos fazer de conta
que a vida foi sempre doce
vamos fazê-la de trouxa
fazer-lhe cara bonita
mesmo quando ela não mereça

melhor: vamos fazer dela uma festa
90 anos de festa


Mãe, vamos fazer uma festa

25.4.14

Kepler 186f

Quando eu crescer quero ser astronauta
quem não quer? 
mas quando for grande a sério 
quem sabe quando for velho 
e sábio
ah, mãe, quero ser astrónomo
pela janela vigiar os planetas
adivinhar onde vão, a que horas voltam
e de repente enamorar-me de um
- consegue ver? ali, aquele
ténue, breve brilhinho distante
ou nem mesmo isso - aquele vestígio
ou ainda menos - o fantasma
do rasto de um grão de areia a fazer sombra a uma estrela
longe
longe
muito longe

então virar para ele demoradamente
a ponta amante do meu telescópio
e acreditar que foi para mim que piscou
numa tarde como esta, há quatrocentos e noventa anos
e desde então, sem pressa, como quem
conhece o que está escrito nas estrelas
foi-me enviando, imperturbável, os seus fótons
os seus neutrinos

e esperando por mim

24.1.14

Balanço

Desperdicei o meu dia
da manhã ao meio dia
vi-o escorrer pelo ralo
da pia

desde a sesta até à ceia
vi-o fugir como a areia
que o vento leva da praia
levou-o a maré cheia
a turista em sua saia
vi-o fugir como a areia
pela fresta da ampulheta
ficou a vida incompleta
de tudo o que prometia
queria-o guardar não pude
fazê-lo render, não soube
não tenho o campo lavrado
a página está baldia
nem grão de trigo plantado
nem semente de poesia

desperdicei o meu dia 

21.1.14

A quem



A quem
a quem me devo
a quem descrevo sempre o que
não fiz
a quem nunca me atrevo a parecer
mais que aprendiz
a quem prometo outra vez ser
feliz
a quem consinto se ao me ver
me diz
aquém
aquém da ponte que leva ao que
quis
aquém do ponto imaginário em que
sorris

a quem?