28.7.05

Não escolhas tanto


Não, não escolhas tanto
vê como enquanto
escolhes passa o tempo, e quanto
desdenhas te abandona
vê como te desgrenhas
vê como desmorona
teu cabelo sem brilho, o teu mamilo
o menisco no escuro, a rótula
gasta, rota, torta
já sem remédio, já sem resgate,
vê o teu rosto que colado à tarde
desbota
e a testa que se crispa
e a chispa
morta
Não, não escolhas tanto
não vês que pouco importa
de que lado te deitas
se quanto enjeitas,
se quanto gostas,
vê como parte,

vê como corta
a quina do crepúsculo a tua aorta
daquela esquina de onde ainda te fita
vê a crina do sonho que se agita
e vira as costas
Elevadores


Elevadores são máquinas solícitas
deslizam em silêncio entre o céu e a terra
esperam sem nenhuma esperança
o próximo chamado
elevadores nunca vão muito longe
não protestam, nada reivindicam
não querem para nada ter nas mãos
o próprio destino
lá do seu poço de sombra
de vez em quando espreitam cá para fora
olham as nossas ruas, saguões, corredores
o mundo onde agitamos, ciosos
a nossa sôfrega mobilidade
depois cerram de novo as pálpebras sem pressa
tão devagar, tão preguiçosamente
que terá sido antes um bocejo

elevadores são bichos circunspectos
preferem ficar no seu canto
devoram-nos sem apetite
vomitam-nos sem asco
têm, com certeza, os seus altos e baixos
mas não se queixam
no máximo param entre dois andares
e não avisam o porteiro

27.7.05

Darwinismo



Como da acácia brotou a girafa
cada vez mais alta, cada vez mais alta
e da girafa brotou a acácia
como a gazela gerou a chita
e a chita gerou a gazela
os cardos, os lábios do elefante
e os lábios do elefante, os cardos
deixa que seja eu a te formar.
Não temos gerações a perder de vista
nem a senha dos nossos códigos genéticos
temos que ser rápidos
em vez de milhões de anos, esta tarde,
amanhã de manhã, a próxima semana
com sorte os próximos meses, os próximos anos
sejamos a traça e o morcego
a lula e o camarão
o leão e a hiena
sejamos o hipopótamo e o pássaro que o limpa
o pastor e o seu cão
o cão e o seu lobo
o lobo e a sua ovelha
a ovelha e o seu pastor.
Deixa ser eu a tua circunstância
tu predador, eu caça,
eu caçador, tu carapaça
e em cada encontro se decida
como será a próxima investida
que cores vais vestir, que manhas, que manobras
que forma de fugir, de picar, de morder
onde quero morar, onde queres morrer
que artes para me enganar
com que teias te envolver.
Com o tempo, já sabes, ganharei olhos complexos
tu aprenderás a cantar
terás asas nos pés, fabricarás seda
eu me confundirei com as paredes da casa
cavarei tocas, fingirei de morto
nas horas vagas encherás de veneno
as tuas mandíbulas cada vez mais vistosas
terás escamas de cores espantosas
eu, anticorpos e paciência.
Ao fim dessa lenta evolução
já não seremos da mesma espécie
eu talvez um daqueles bichos bizarros
que dizem que moram no porão dos mares
cegos e cintilantes, transparentes, obsessivos
e tu quem sabe uma tal planta furtiva
que segundo li vai espalhando as suas raízes
discretamente, persistentemente
milhas e milhas e milhas e milhas
pelo que se pensava ser o deserto

26.7.05

Boda



Quando eu tiver cento e três anos
tu noventa e nove
calar-nos-emos na varanda
onde nada se move

tu fingirás que me ignoras
a tarde inteira
mas eu vou perguntando as horas
e assim te admiro, de esguelha

depois iremos às compras
lentamente, lentamente,
dois bichos nas suas conchas
tu, que és mais nova, irás à frente

quando voltarmos, muito mais tarde
à varanda quieta
o dia morrerá de velho
nós, sobreviventes
nadaremos os nossos olhos pela paisagem

tu acenderás um cigarro
eu, para ostentar delicadeza
tossirei só um bocadinho
mas pensarei aos berros:

assim, meu amor, já não vives muito

então tu, que me lês os pensamentos
sairás a bater todas as portas
três noites de chuva, três dias, tão lentos
escorrem pelos vidros -- já não voltam

25.7.05

Poema hípico


Pensavas que ias cavalgar os dias
pelos prados floridos, pelas alamedas
pensavas que ias colher madressilvas
hoje, como então
se visses uma madressilva não saberias reconhecê-la
é uma palavra que se lê nos livros
cheira bem
enfeita a saia de moças muito moças
e enternecedoramente saudáveis
ai, ai

também há de ser uma planta que há lá pelos bosques

pensavas que ias percorrer os bosques
pacatá pacatá pacatá
pensavas ter as rédeas e o estribo
enquanto pensavas o tempo te foi cavalgando
eia, cavalinho
sempre a trote e com o tempo na garupa
pacatá
Dicionário


Massacre
morticínio extermínio matança
mortandade chacina carnagem
carnificina
genocídio infanticídio solução
final
etnocídio homicídio assassinato
fratricídio
matricídio etnocídio limpeza étnica
parricídio sororicídio
holocausto dizimação
massacre

9.7.05

Manhã

dedica-te às tarefas mais humildes
quadriculadamente picar esta cebola
se for preciso amolar primeiro a faca
tendo apenas cuidado para não haver sangue
havendo sangue chupá-lo com resignação e vagar
mas o melhor é que não: não haja sangue

lágrimas, sim
embora lágrimas humildes, sem ponta de melodrama
se forem muitas aproveitar-lhes o sal
para o refogado
juntar o alho e a cebola picada
meio tablete de tempero e já está

enquanto não fica pronto ir espanando o pó de tudo
das paredes dos móveis das palavras
se sobrar tempo limpar de todo o mal a cidade
é grande a cidade, eu sei
por isso não te afastes muito
não vá subitamente encher-se a casa
de um cheiro amargo de lágrima queimada