31.8.05

Nepotismo



Cantar o dom: o caprichoso furo
por onde sai, só quando lhe dá jeito
o fluido da divindade
enxurrada de amor sobre a cidade
e o resto de nós no escuro
só os filhotes do acaso, os seus eleitos
repletos do que aos outros escasseia
nem vêem a nossa inveja que passeia
despudoradamente pelas ruas
uma na frente a outra atrás a sua
desprovida de tudo, descabida
pretensão, água benta ao desbarato:
prato vazio, frio -- e ali ao lado
a esbórnia do barão

vão
tiritar de despeito e de misérias
melhor sair de férias para sempre
exilar-se em Pequim, em Lima, em Roma
entrar de vez profundamente em coma
mergulhar no mar Ártico sem pele
sem pressa se afogar, tocar o fundo
deixar que o mundo finalmente gele
antes do espasmo final, um segundo
rever a face do zero absoluto.

26.8.05

A aranha Epifânia


Era uma vez uma aranha
que se chamava Epifânia
e o dia inteiro, sem pressa,
esperava a sua presa.

O sol, por não gostar dessa
forma de ser, arremessa
sua incendiária seta
contra a armadilha de seda

mas não tem sorte e se enleia
a luz do dia na teia.

A aranha Epifânia, quieta
espera o sol que se agita
tecer seu próprio novelo
só então se põe a comê-lo

com mandíbulas de aranha
e uma calma de rainha
até estar de luz tão cheia
que dorme na sua teia
sua merecida sesta.

Do dia agora o que resta
é essa aranha em sua teia
que o pôr do sol encandeia.

23.8.05

Lápide



De mim
que nada reste mais que isto

este nítido risco
do princípio ao sem fim

e esta palavra que busco
para uma folha vazia

precária ponte que o dia
traça entre o escuro e o escuro

4.8.05

Paisagem com o Tejo e uma gaivota



Da janela do comboio projectei a paisagem:
entre a recta do rio, imaculada
e o capricho da serra, mais longe
era preciso que aquela gaivota
fosse voando, horizontal e sempre
até que o rasto que o seu voo traçasse
todo outro risco do mundo suprimindo
pela janela compusesse o universo:
as coisas todas ali, reequilibradas.

A gaivota, porém, tendo avistado um peixe
ou outra coisa qualquer, em tudo alheia
à minha frágil, perfeita arquitectura
bem antes do previsto inflectiu o seu curso
e ao mergulhar no rio -- já não recta
mas rio mesmo, de água mesmo, rebelde
a todo plano meu -- afogou a paisagem
e me deixou ali, desapontado e tão à toa
que, da janela do trem, e à falta de melhor passatempo
me pus a pensar nas manias de deus
e nas partidas que nos prega o amor
e em rios que transbordam e em outras dessas coisas
desprovidas de maior importância.

3.8.05

Etiologia

Todas as coisas já são mais que usadas
mas mais que todas elas as palavras
passeiam entre as bocas como vírus
como átomos promíscuos de oxigénio
nossos anelos, nossos zelos nelas
não somos nós, são elas, nossos elos
lá de onde vêm, quem sabe desde quando
trazem mensagens das caladas eras
por não sabermos lê-las, e as colhermos
pensando que eram nossas, da traquéia
já há tanto tempo muda de um qualquer
usaram a nossa voz, fizeram dela
o seu cavalo, o seu táxi, a sua amante
de circunstância, nada de importante
depois partiram, deixaram-nos sós.
Muito depois de já não termos mais
assunto, voz, nem língua, nem garganta
cada palavra que hoje vibra em nós
contará ainda, de nós esquecida
outras histórias, outra despedida
outra alegria, outra desesperança.

1.8.05

Manifesto


Porque duvido que algum dia aprenda
sânscrito
escreverei nesta língua portuguesa
como se fosse sânscrito
inventarei gramáticas especiosas
e às palavras mais caseiras darei outros sentidos
semearei alusões indecifráveis
ficarão para sempre ali piscando um olho
sem que ninguém lhes corresponda
a quem estranhar
diremos que é um tique nervoso