17.10.21

Não escolhas tanto

Não, não escolhas tanto

vê como enquanto
escolhes passa o tempo, e quanto
desdenhas te abandona
vê como se desgrenha
vê como desmorona
teu cabelo sem brilho, o teu mamilo 
o menisco no escuro, a rótula 
gasta, rota, torta 
já sem remédio, já sem resgate, 
vê o teu rosto que colado à tarde 
desbota 
e a testa que se crispa 
e a chispa 
morta 

Não escolhas tanto 
não vês que pouco importa 
de que lado te deitas 
se quanto enjeitas, 
se de quanto gostas, 
vê como parte, 
vê como corta 
a quina do crepúsculo a tua aorta

daquela esquina de onde ainda te fita 
vê a crina do sonho que se agita 
e vira as costas

12.9.21

Num postal de Babilônia

 

onde está a minha cidade 
deixei a que tinha 
esta que adoptei 
não é minha 

falam quase a minha língua 
mas com tão estranha sintaxe 
que eu, quando abro a boca, é como 
se mancasse 

minha língua claudicante 
vai tropeçando nos pronomes 
e na falta de bigodes 
no que se bebe, no que se come 

quando, turista, visito 
a cidade que deixei 
lá não sou menos estrangeiro 
ou então, se sou, já não sei 

fiquei no meio do caminho 
no meio do mar, no meio 
do corredor do avião 
entre lisboa e o rio 

com outros no mesmo barco 
faço churrascos, sambas, festas 
para esquecer o que perdemos 
fazer a conta do que resta

Mãe

 
O que é que eu faço nesta terra longe 
onde ninguém nem minha língua fala? 
não sabem o que é frevo, roça, bonde 
até doçura de bala resvala 
na língua deles para o som de um tiro 
e é só tiro o que ouvem quando estoura 
em minha boca a saudade do Rio 
para mim é guizo pela noite fora 
eles nem sonham como soa isso 
Ô mãe, me conta quando é que eu volto 
desta terra em que mais me enraízo 
com quanto mais remorsos a revolvo 
esse oceano que pus pelo meio 
era o muro alto atrás do qual morava 
mais doce, mais maduro, o verde alheio 
hoje sei o que era: água salgada 
tanta água, mãe, tanta, tanta água 
que nordestino sol a enxugaria 
meu caminho de volta para casa 
que Itaipu o seca, que meio dia?

Diagnóstico

Mora em mim um poeta com febre 
a noite inteira em silêncio recita 
longos poemas que depois esquece 
ou que, se os recorda, por preguiça 
de manhã não escreve 
mora em mim esse artista calado 
de madrugada esses passos que sinto 
é ele que percorre de alto a baixo 
a noite inteira o seu labirinto 
o poema trancado