12.8.20

Das palavras

Palavras são como casas

(ruas

pontes)

uma tão pequena parte do mundo

 

lá fora há pólen pó bactérias gafanhotos

rugosidades fumo espinhos lixo

e, entre todas essas coisas com nome,

as outras, tantas mais, que não têm nome:

o que sente o pássaro nas suas vísceras quando o tempo vai mudar amanhã

a coincidência de forma entre a pedra e a pedra

quando entre elas passa o olhar de um lagarto

o que sentiu o teu corpo nessa específica tarde

quando o teu corpo era a tarde e a impossibilidade de ser a tarde

a tarde era esquiva e longe

a tarde era o resumo das distâncias

a tarde era nunca mais

 

a tarde não foi feita para caber em palavras

o mundo não cabe em palavras

o mundo não cabe

não cabe nos teus olhos nos teus braços

nos teus nãos

por isso carregas esse medo do mundo

moves-te de casa em casa

de rua em rua

esgueiras-te por cima das pontes como quem anda em pontas de pés

por isso és esse Jacques Tati

tão cómico a desviares-te da lama dos buracos da sujeira dos cães

dos vírus dos mendigos das correntes de ar

tão bom menino

sempre calçado sempre agasalhado como a mãe mandou

palavras são como pantufas

são como luvas

como cachecóis

 

acontece que o mundo não respeita as palavras

abre-se uma janela e ele entra

uma fresta no telhado e ele entra

uma fresta na pele

a mão que te esqueceste de lavar

o mundo enche a casa de pó,

alaga as ruas

dissolve os teus pulmões

palavras são como galochas

um tanto ridículas mesmo quando te mantêm os pés secos

são como chapéus de chuva e acontece que às vezes venta

era tanto vento, mãe, tanto vento

 

o mundo não foi feito para caber em palavras.