14.10.06

Playground



Outra vez, menina
a brincar com escorpiões
já não te disse que não fazem bem
só por te sentares assim,
obliquamente
a saia tão rodada que quase
tapa todo o mal
só por saberes trespassar as coisas
com esse olhar que é como se não visse
o mundo todo, à tua volta, translúcido
como essa jóia com que te divertes
bela, pequenina e venenosa
ah, menina, menina,
a mexer no que não deves
só porque o teu olhar atravessa as coisas
como se apenas te importasse o que está além
pois fica a saber que as coisas,
menina,
somente as coisas
te ferirão

8.10.06

Arquitetura


Existirmos é aquela voz que canta
na catedral onde ninguém a escuta
só ela sabe, esse cantar que trança
quanto lhe basta, quanto mais lhe custa

existirmos é a minúcia da planta
que a voz a sós arquitecta e executa
quem mais dirá se cruz, se luz, se lança
a alta ogiva do som, pontiaguda?

existirmos é o que esse canto busca:
só ele sabe quando quase o alcança
e -- tanto -- o quanto não o alcança nunca

existirmos é o mais que nele dança
e logo passa -- que a canção é curta
e a nave surda -- embora a vida tanta


in Poemas durante a chuva, Lisboa, Mariposa Azual, 1999

5.10.06

Som


O som moreno, cabisbaixo
moreno de uma forma turva
atarracado, taciturno
acocorou-se no tímpano do mundo

Zumbiu

no restante universo perpetrando
seu sólido resmungo

(iam meninos de bicicleta
eram um bando alado e elegante
fótons em festa
anti-matéria pedalando sem massa
ou nem isso
o som petrificou-os para sempre
agora pedalam pedalam
na mesma esquina do espaço tempo
nostálgicas estúpidas estátuas
morenas como aquele som)