Palavras são como casas
(ruas
pontes)
uma tão pequena parte do mundo
lá fora há pólen pó bactérias gafanhotos
rugosidades fumo espinhos lixo
e, entre todas essas coisas com nome,
as outras, tantas mais, que não têm nome:
o que sente o pássaro nas suas vísceras quando o tempo
vai mudar amanhã
a coincidência de forma entre a pedra e a pedra
quando entre elas passa o olhar de um lagarto
o que sentiu o teu corpo nessa específica tarde
quando o teu corpo era a tarde e a impossibilidade de ser a
tarde
a tarde era esquiva e longe
a tarde era o resumo das
distâncias
a tarde era nunca mais
a tarde não foi feita para caber em palavras
o mundo não cabe em palavras
o mundo não cabe
não cabe nos teus olhos nos teus braços
nos teus nãos
por isso carregas esse medo do mundo
moves-te de casa em casa
de rua em rua
esgueiras-te por cima das pontes como quem anda em pontas de pés
por isso és esse Jacques Tati
tão cómico a desviares-te da lama dos buracos da sujeira dos
cães
dos vírus dos mendigos das correntes de ar
tão bom menino
sempre calçado sempre agasalhado como a mãe mandou
palavras são como pantufas
são como luvas
como cachecóis
acontece que o mundo não respeita as palavras
abre-se uma janela e ele entra
uma fresta no telhado e ele entra
uma fresta na pele
a mão que te esqueceste de lavar
o mundo enche a casa de pó,
alaga as ruas
dissolve os teus pulmões
palavras são como galochas
um tanto ridículas mesmo quando te mantêm os pés secos
são como chapéus de chuva e acontece que às vezes venta
era tanto vento, mãe, tanto vento
o mundo não foi feito para caber em palavras.
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