18.10.05

O morto


Depois, veremos.
Por estes dias
o morto viverá connosco
trincará o nosso pão, ressonará
o seu sono pelos nossos corredores
previnam as visitas, os vizinhos
é inútil reclamar, inútil chamar a polícia
o morto ainda não foi embora
um belo dia há de encontrar o seu leito
no mesmo esquecimento onde se deita tudo
por ora, tenham paciência
uns dias mais, talvez, talvez mais tempo
será preciso aturarmos o morto
seus cotovelos na mesa domingueira
almoço após almoço, até que o tempo
depois de o mastigar, macrobioticamente
de o dissolver na boca
acabe enfim de o digerir, enquanto o morto
faz a sesta na sala, morto
e farto
e que ninguém lhe ligue, ninguém toque
no assunto deste morto inconveniente
que tosse pelas nossas madrugadas
até que a indiferença, acumulando-se
como o pó no soalho, vá enterrando
gradualmente, lentamente, o morto
talvez leve o seu tempo
até que a chuva, caindo, caindo
sobre a casa, a terra, o universo
desbote o morto, tire a nódoa do morto
lave o cheiro do morto, a voz do morto
e o cortejo das águas leve o morto
para bem longe,
um rio bem longe,
o mar
bem longe

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