30.5.06

Aos meus companheiros

É hora, companheiros
até aqui estivemos ensaiando
foi tudo muito bom e valeu
mas agora começa o verdadeiro espectáculo
todos juntos
espalmemos as mãos com leveza e com graça
vamos alçar os pés, brandir os braços e girar
e descer a porrada

porrada
eu quero ver punhos fechados esmagando queixos
quero ver o tapa no ouvido
na boca do estômago a bela cotovelada
isso, companheiros
até agora combatemos na sombra
por baixo do pano íamos dando rasteiras anódinas
agora é no centro do palco
na linha divisória do gramado vamos linchar o juiz e a mãe do juiz
e o time adversário e cada um dos nossos próprios parceiros


porrada
cubramo-nos finalmente de porrada
uns aos outros vamos nos esbofetear e baixar o cacete
e nos morder e nos lanhar e nos cravar as unhas
todos o merecemos
acaso não temos sido vis, irremediavelmente estúpidos
bestas mesquinhos sórdidos miseráveis
todos não estivemos ocupados unicamente em passar a perna
ela em mim, eu em você, eles em todos nós
todos caídos no chão, passemos portanto à etapa seguinte
ao chute na boca, ao chute no saco
ao chute no pé do ouvido, ao chute nos olhos
todos com empenho e garra e determinação
vamos fazer o pau cantar de puro gozo
e que ninguém deixe a arena até que todos estejam esfolados
até o menos ridículo
o menos reles
o mais insignificante de nós
todos com escoriações, todos cobertos de hematomas
esse que está se levantando, atenção
metam-lhe a mão na cara
todos os ossos quebrados todos os dentes partidos
todos mutilados, mancos, coxos
todos com um olho a menos, com uma orelha faltando
com a língua decepada a pender de um canto da boca
e a segurar com as mãos o massacrado estômago
os triturados colhões
e a não conter ânsias de vómito e cascatas de sangue
!quiero ver sangre, sangre, sangre!
fazendo poças e se esparramando
suavemente no asfalto da cidade.


In Poemas durante a chuva, Lisboa, Mariposa Azual, 1999.

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