8.8.06

Boletim



I

Não era disto que eu queria falar
acredita
queria falar de alvoradas lisérgicas
pêssegos a pestanejar para nós como vulvas
a face oculta de uma estrela tão longe
regida por físicas tão inverosímeis
que todos os possíveis, lá, são possíveis
o cosmo a destruir-se e a recriar-se sôfrego
quinhentas e trinta e três vírgula três milhões de vezes ao cubo
por segundo
queria falar de tudo

mas não disto

queria falar do Darfur
queria falar do Líbano
crianças às dezenas massacradas por um único míssil
o prédio de apartamentos
a camioneta onde fugiam
tudo arrasado e carbonizado e sem remédio morto
os hospitais a abarrotar, os braços
pernas, cabeças
pés dentro dos sapatos, pedaços
de vísceras misturadas aos escombros
pó tijolos vergalhões fedor a sangue
mas não se sente o sangue
são só sombras
e sempre as lágrimas berradas em árabe
para que ninguém as entenda
todos os urros iguais
monótonos
já vistos
o tédio
o grande aborrecimento dessa guerra sem fim
queria falar de tudo isso
não de mim

e no entanto
lá me volta a caneta ao mesmo canto
banal também como uma sirene
em Tiro
fazer o quê
só me apetece falar dessa tristeza
essa mesma tristeza, sempre
essa tristeza

II

Essa tristeza que engoliu o mundo
faz-me pensar um pouco no dilúvio
lembras-te?
a diferença é não haver a arca
nem bodas de animais à superfície
o mundo todo, submarino
anda para aí, flutuando, calado

entretanto vêm falar comigo
são sólidos, afáveis, quotidianos
têm as roupas secas, os olhos secos, os pés
colam-se ao solo de asfalto como se não fosse
o fundo
parece o mesmo antigo árido mundo
até mais seco, agora,
com estas vagas modernas de calor
mas eu sei

eu sei da inundação que embebe tudo
o ar em volta, paredes, carros, tudo
mergulhado nessa velha tristeza
e nada a secará
nem eu saber que é só a minha cabeça
meu cérebro esponjoso, mergulhado
nos fluidos costumeiros
substâncias químicas perfeitamente descritas pela ciência
só, talvez, no meu caso, do avesso
as enzimas erradas, o pH
ligeiramente para cima ou para baixo
um neurotransmissor em falta
ou em excesso
nada grave
se for preciso, mais tarde
esclareço

embora saiba que não há mais tarde
só este agora a alagar o mundo
memória de algo que não recomeça
e essa promessa
essa teimosa
velha
vã promessa



III

pronto
já foi

mas não era nada disto

a sério que eu queria
pôr outro disco
falar de alguma coisa diferente
qualquer coisa servia: aquela árvore
que uma onda arrancou no Mississipi
o tempo que ali esteve, inerte, exposta
a intimidade das suas raízes
e a ruminar talvez no que lhe resta

as raízes ao léu, a terra
ali tão perto e tão de vez perdida
as desvantagens de quem não se arrasta

a árvore exilada, ainda bela
e tudo nela
inútil

ou então, se não houvesse mais assunto
falávamos do tempo
que é como quem diz: do fim dos tempos
este calor, estes incêndios
certos como o verão, as vagas
de chuva e vento a demolir cidades
estas ondas gigantes, o deserto
a avançar pelas ruas de Londres
enquanto vão desmoronando os pólos
e em São Paulo
gelam de medo

2 comentários:

  1. Não queria falar disso, ou daquilo, ou daquilo outro. Pior do que não falar o que se queria e não ter para quem falar. A falta do amor é que é infelicidade.

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